Aldeia de terra


Dia 7, Ait Benhaddou

Mais uma manhã soalheira e, para não variar, acordei uma hora antes da hora marcada.

Despachámos a rotina da manhã, descemos para o pequeno-almoço, e que bom que era! Um dos mais bem servidos: pão, manteiga, mel, doces, crepes, bolos, cereais, iogurte, queijo… Ena!... Tivemos a companhia da Rita, o que nos permitiu ter uma agradável conversa com ela e perceber um pouco melhor como é viver nesta terra.

Ficámos a perceber que a recepção não é pacífica, mas que depois da aceitação a convivência é sã, tendo direito até a cuidados especiais. Não foi difícil perceber-mos que aqui os homens e mulheres têm um papel específico e distinto. Sistematicamente vimos á beira da estrada marroquinos sentados à sombra. Nunca vimos mulheres. As que vimos estavam dedicadas aos “seus” afazeres, trabalhando nos campos. A mesma coisa nos cafés: não são para as marroquinas. Não será assim em todo o lado, mas no geral aqui, claramente o homem é rei, por tradição e religião…

Outro aspecto para nós estranho é o desprezo que todos parecem ter por animais. O homem reina a escala e abaixo dele estão os animais impuros e sujos, como o gato, cão e no extremo o burro… E esta do burro é curioso dado que dependem tanto dele. Mas para nosso espanto ficámos a saber que uma das piores ofensas por ali é chamar alguém de burro!… Isto para dizer que apesar disso, a Rita sendo uma ocidental está totalmente inserida e aceite na comunidade onde se localiza o dar, tendo mesmo direito a uma atenção especial da comunidade. Ela e a sua lindíssima cadela Jana, uma labrador cruzada de husky com uns gloriosos doze anos. Assim as duas gozam de alguns “privilégios”, provavelmente pelo seu estatuto não muçulmano e europeu, e esse é um traço que caracteriza bem o povo marroquino, que é acolhedor como poucos.

Enquanto falávamos disto e doutras coisas, fomos dando conta da fantástica mesa de pequeno-almoço. No final estávamos satisfeitos e prontos para seguir viagem. Esta não seria das mais meigas pois tínhamos entre nós e Marraqueche a passagem pelo Alto Atlas, nomeadamente pelo Pico do Tichka a 2260m de altitude.

Ainda antes de abalar, umas festas à amorosa Jana e agradecimentos à Rita.

À saída de Ouarzazate uma paragem na farmácia para comprar qualquer coisa para a constipação do Benedito que estava a piorar. Na farmácia fomos atendidos por uma jovem farmacêutica em traje ocidental que gentilmente nos aconselhou e vendeu a medicação necessária para o Benedito.

O dia estava fantástico com um solzinho agradável e uma temperatura confortável. À saída de Ouarzazate parámos nos estúdios ECLA, famosos por aí terem sido rodados umas quantas películas comerciais (“The Mummy”, “Gladiator”, “Alexander”, “Babel”, “Prince of Persia”, entre muitos outros). Virámos as motos com os “focinhos” para a estrada ajeitando-as para a fotografia… À entrada estava um marroquino com uma máquina fotográfica de boa gama a tirar umas fotos. Esta estranha figura de cabelos emaranhados pela nuca veio ter connosco dizendo que estava ali a tirar umas fotos e que as motas estavam a estorvar… Prontifiquei-me para retirarmos as motos, afinal o tipo já ali se encontrava. O gajo não quis, disse que voltava noutro dia e seguiu para o seu Clio que estava ali estacionado. OK, tudo bem, deve ter acordado com os pés de fora… Quando nos estávamos a preparar para puxar das máquinas, aparece o fulano outra vez, com um monte de fotografias panorâmicas impressas… Queria-nos mostrar o trabalho. “Tânger!” dizia ele, “Isto foi tirado em Tânger!”… E tivemos de gramar com o “álbum fotográfico” todo!

Sinceramente as impressões não estavam grande coisa. A resolução da imagem parecia não ser suficiente para o tamanho de impressão, mas ainda me mostrei interessado e fiz umas perguntas. Depois de ver o “rolo” todo, voltei-lhe a dizer que desviaríamos as motas para ele continuar o seu trabalho. O tipo voltou a negar, e foi-se embora. Grande maluco!… Bom, finalmente batemos umas chapas descansados e continuámos o caminho.
Cerca de uma hora depois estávamos a sair da nacional em direcção a Ait Benhaddou, e quase que falhávamos o sítio. O ponto do local estava mais ou menos tirado, e dado que não se vê o local da estrada, não é óbvio onde se deve parar. Existe apenas uma modesta placa a indicar o local de estacionamento. À primeira não vimos e seguimos em diante. Ao chegar a uma ponte de madeira sobre um rio, já estávamos certos que não era por ali. Tirou-se uma foto e voltámos atrás.

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Deixámos as motas no parque à sombra e descemos até ao rio à procura de Benhaddou. No caminho de descida há logo do lado esquerdo uma série de lojas de produtos artesanais.

À porta de uma destas estava um marroquino tradicionalmente trajado que meteu logo conversa… Quando percebeu que éramos portugueses virou-se dizendo “batatas fritas com sardinhas!!!”… Hã? Nem sequer combina... E eu a pensar que o Cristiano Ronaldo é que era popular!… Mandou-nos entrar, dizia ele que precisava da nossa ajuda… Queres ver que está aqui outro maluco?!... Bem, lá entramos na loja, que parecia uma autêntica gruta do Alibabá.
Sentámo-nos, e deu-me para a mão um bloco de folhas e uma caneta. Queria que lhe escrevesse uma carta em português para um amigo que tinha. Pelo que percebi, tinha estabelecido uma amizade com um português de Lisboa durante uma incursão no deserto. E lá fiz o ditado, que dizia mais ou menos: “Olha pá, já mandei os tapetes e já tenho aqui o dinheiro, avisa lá quando chegarem… E quando quiseres aparece aí”.
Ficou-nos agradecido e serviu-nos um belo de um chá! Falámos de uma série de coisas, nomeadamente do chá. O que estávamos a beber, era a versão whisky berbere, que é portanto feito em exclusivo da planta do chá. Era assim que se bebia no deserto, porque a menta dava gazes, dizia ele… Certo, agradecemos a informação.

Antes de irmos embora, claro, tivemos direito à demonstração de artigos… O Benedito ainda se interessou por um puff, mas não o chegou a comprar. Eu acabei por trazer uma lindíssima Cruz do Sul (ou cruz berber) em colar, cuja função original era a de auxiliar à navegação por estrelas (o seu formato permite encontrar no céu a constelação do mesmo nome, servindo a mesma de orientação). Tirou-se uma foto de “família” para a posteridade e seguimos caminho.

Para alcançar Ait Benhaddou é preciso atravessar um pequeno rio, o Oued Ounila. O curso nesta altura do ano não é grande, mesmo assim estão colocadas umas fileiras de sacos de areia que permitem atravessar o rio sem molhar o pé.

Do outro lado fomos logo abordados por uns tipos que queriam oferecer os seus préstimos de guias a troco de alguma “propina” (Marrocos será sem dúvida o país com mais guias e guardas de parques que alguma vez vi!). Claro está que apesar da insistência dispensámo-los e seguimos.

A vista exterior da pequena vila de argila é magnífica e incrivelmente fotogénica.

Facilmente se percebe o porquê deste lugar ser tão popular nas produções cinematográficas. Fizemos a entrada pela porta principal, tendo sidos interceptados por um velhote marroquino que nos cobrou 10 dirhams (cerca de 1 euro) cada pela entrada no museu com oferta de chá. Quando por nós passou um grupo de jovens marroquinos que efectuou o pagamento da entrada ao velhote em palmadas nas costas, percebemos que o nosso bilhete incluía afinal também um excelente “barrete” marroquino! Não fizemos alarido e seguimos o caminho. Avançámos e entrámos nalguns edifícios que se encontravam abertos e desabitados. Benhaddou não é uma vila “fantasma”, há pessoas que aqui moram e comércio de portas abertas. Existem no entanto uma série de edifícios típicos e históricos abertos ao público que vão sendo mantidos pela comunidade para fins turísticos. Esperemos que o que nos foi cobrado à entrada seja em prol destas benfeitorias!

Avançámos pelas ruas labirínticas de paredes de barro e rapidamente encontrámos a rua principal onde se localizam as habituais lojas de artesanato e afins. Uma delas assemelhava-se a uma pequena galeria de pinturas. Quando espreitámos lá para dentro, o proprietário e artista que se encontrava cá fora fez questão de nos fazer uma demonstração de pintura com chá. Segundo ele esta técnica seria antiga e utilizada por ali entre tribos para passar mensagens secretas. O tipo pegou numa folha e com o pincel embebido naquilo que parecia chá começou a pincelar o papel. Ficámos surpresos porque não se via nada. Ou ele via muito bem ou estava a pintar de cor. Finalmente munido de uma chama deu um calor à folha queimando-a por debaixo. Foi aí que se fez magia e começou a aparecer um desenho de uma paisagem, muito bem pintada, diga-se de passagem. Fantástico!… É claro que depois queria que levássemos alguma pintura destas, mas tivemos de lhe explicar que “quadros” em bagagem de mota, não são compatíveis…



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