Até ao meio do nada


Dia 4, Imilchil

A estrada seguia verdejante, o que me parecia estranho. As poucas fotos que tinha visto do Médio Atlas contemplavam sempre paisagens áridas e rochosas, nada como o que se desenrolava à nossa frente. Lembro-me de comentar isso com o Barradas e de lhe dizer que já estava à espera que a “coisa” mudasse drasticamente, tipo linha separadora. Aqui é verde, aqui já não é. E assim foi. Já mais para o final da tarde, o cenário mudou de verde para cinzento. Em poucos metros deixou de haver vegetação alta e abundante para dar lugar a alguns arbustos mal semeados. Agora sim cheira a Atlas! Logo depois atravessámos uma aldeia típica com estrada totalmente em terra. À saída abastecemos e continuámos pelas colinas e montanhas. Uma paisagem fantástica que nos transmitia mesmo o sentimento de aventura. O percurso alternava em curvas simples intervaladas por longas rectas. Num desses segmentos fizemos uma paragem. O cenário era divinal! Ao longe, nas colinas, ainda batia o Sol, o que dava à terra um bonito colorido ocre. Onde estávamos, numa espécie de vale, a sombra coloria tudo em nosso redor num cinzento seco.

Não nos apercebemos que logo ali estava um rebanho acompanhado de duas jovens que dele cuidavam. Uma delas uma menina ainda pequenita com ar reguila, a outra uma jovem provavelmente adulta. Digo provavelmente, porque só lhe víamos os olhos. Ainda a confundi como sendo a provável mãe da pequena, mas talvez fosse a irmã. Estava trajada com indumentária típica que apenas lhe descobria os olhos. Trazíamos todos alguns rebuçados para distribuir, e achamos que ali seria uma boa oportunidade. Cumprimentámos as duas, que nos retribuíram o gesto timidamente. Depois entregámos umas mãos cheias de rebuçados à pequena que ficou efusivamente contente. Tirámos umas fotos e seguimos viagem.

A estrada adiante assumia uma paisagem e traçado ainda mais exótico. Logo adiante o Barradas pára o andamento. Tínhamos um Oued para atravessar (um riacho portanto). A corrente estava forte, mas a passagem era feita sobre cimento. Nada a temer. O Benedito como sempre, fez-se ao piso primeiro, sem medos, e queria até repetir a coisa mais vezes. Nesse momento apareceram uma série de miúdos ao nosso redor. Geralmente é isso que acontece, quando se pára na estrada, eles abeiram-se de nós na esperança de receber coisas. Todos pedem “stylos” ou dirhans. “Stylo” é caneta em francês, e foi um mau hábito introduzido pelos turistas. Parece que alguém cismou há um tempo atrás que a distribuição de canetas ajudaria na alfabetização dos miúdos, então foi-se criando o hábito de distribuir canetas. Daí aos rebuçados e dirhans foi um passo, e agora os miúdos anseiam desesperadamente por “prendas”. Ao ponto de se atravessarem na estrada ordenando-nos a parar, ou a mandar pedras, como já ouvi nalguns relatos. Eu, durante esse tempo, só vi dois ou três a ameaçarem com calhaus, mas nenhuma concretização.

Depois do Barradas, passo eu o oued, e já estávamos cheios de criançada à nossa volta. Queriam levar o meu saco inteiro de caramelos… Levam uma mão cheia cada um e vão com sorte. E siga em diante que já se faz tarde. Continuávamos a atravessar esta espécie de vale com paisagens incríveis. Uma sensação difícil de exprimir com palavras. O percurso ia piorando em condições e traçado. Começámos a trepar a encosta por uma estrada sinuosa miseravelmente mantida. Havia troços sem um metro de alcatrão. Estava a ficar escuro e já estava mesmo de noite quando nos abeirámos do lago. Ia-mos falhando a cena! É que ali não há mesmo luz nenhuma. Não havia nada marcado ou reservado, mas tínhamos dois ou três pontos referenciados no GPS. O primeiro seria o Auberge Tislit (auberge é sinónimo de albergaria), à beira do lago com o mesmo nome. No estudo que tinha feito a esta espécie de kashbah (construção típica com laivos de fortaleza) tinha boas referências. Casa muito modesta mantida por uma matriarca berber, conhecida por Madame Malika.

Chegámos e veio logo ter connosco um simpático e pequeno marroquino. Era o Said. Perguntei-lhe se daria para passar ali a noite, disse-me que em princípio sim, mas foi ver. Estacionámos as motos por ali, munidos de uma lanterna. Entrámos no auberge que estava cheio de franceses. Um grupo que estava por ali a fazer um raid em moto-quatro.

Reorganizaram as coisas e um quarto ficou liberto para nós. Perfeito!... Vamos ao jantar. tagine de frango, não nos pareceu mal. Primeiro claro, um chá berber. A kashbah era composta de uma sala ampla no centro, ao seu redor estavam dispostos os quartos e ao fundo as casas de banho muito simples, de “dor nas pernas” como diz o Benedito. Na sala de convívio estavam dispostas umas mesas de plástico onde eram servidas as refeições. Apesar de muito modesto e rudimentar, sabia mesmo bem estar ali!

pintura sobre a lenda dos lagos... fica a explicação na próximo episódio

Perdidos no meio do Atlas só com o essencial e aquele calor humano que os marroquinos genuínos sabem tão bem dispensar. Veio a tagine e o habitual pão marroquino feito com uma massa diferente por aqui. Comemos, bebemos e conversamos. O Said ia nos fazendo companhia, enquanto a Malika tomava conta da cozinha. Tentámos deixar umas coisas a carregar, mas o inversor só aguentava com coisas pequenas. É que ali a electricidade é a baterias, carregadas durante o dia... Posto isto, fomos à deita que amanhã há deserto para fazer.



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